Segunda peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela

Segunda peregrinação no Caminho de Santiago de Compostela

O que leva um empresário e consultor de negócios de 62 anos a percorrer 1.062 quilômetros em 35 dias em dois países, França e Espanha, sob um verão com temperaturas acima de 40 graus? A resposta está na ponta da língua, pois coloquei para mim mesmo o desafio de refazer um trajeto que havia percorrido em 2011, o Caminho de Santiago de Compostela. Mais que isso: acrescentei ao seu desafio um trecho dificílimo, o Caminho Aragonês, que cruza a cadeia de montanhas dos Pirineus.

“Falar em cumprir um propósito, em ultrapassar limites, é muito bonito quando está no discurso.
Mas é na prática que se descobre como alcançar algo que pode fazer você ser uma pessoa melhor.”

A peregrinação sempre foi uma grande metáfora espiritual, pois representa a ligação entre o terreno e o sagrado. O esforço físico para alcançar uma meta representa a viagem espiritual do ser humano. Há evidências históricas de peregrinações desde a Mesopotâmia, passando pelo Egito e pela Grécia. A prática está presente em quase todas as religiões: hinduísmo, budismo, judaísmo, cristianismo e islamismo. Entre os cristãos há três grandes peregrinações: à Terra Santa (Jerusalém), à Roma (Itália) e à Santiago de Compostela (Espanha). O espelhamento entre a vida mundana e a vida espiritual está presente no próprio nome do caminho. Compostela vem de “campo de estrêlas” (do latim campus stellae), ou seja, uma referência à Via Láctea, que norteava os peregrinos nas suas caminhadas noturnas.

Decidi ir adiante em minha experiência. Se o propósito é o que move o peregrino, é ao cumprir a sua trajetória que ele encontra o seu verdadeiro tesouro: a conectividade com o mundo espiritual, que irá levar ao autoconhecimento.

O que mais pesou nesse segundo caminho não foi o fator físico, foi o condicionamento mental, pois sentia uma força que não me pertencia, esse foi, sem dúvida alguma, o efeito mais evidente dessa conectividade. Mas outros, menos evidentes, foram ficando evidentes a medida em que perseguia o seu propósito de cumprir a longa jornada.

A tradição do Caminho

Conta a tradição que Tiago de Zebedeu, discípulo de Jesus chamado de Tiago Maior (havia Tiago Menor, filho de Alfeu), após a crucifixão seguiu para o porto de Andaluzia, na Hispânia, colônia romana, para conduzir a sua missão apostólica de levar a mensagem cristã aos povos. Cruzou a Península Ibérica até o Norte, na Galícia, mas obteve poucos resultados. Decidiu retornar a Jerusalém e lá, foi condenado à decapitação por Heriodes Agripa. Dois de seus discípulos, Atanásio e Teodoro, recolheram seu corpo e o levaram de barco até Iria Flavia, na região galega, obedecendo a uma vontade do próprio Tiago. Lá o enterraram em 44 d. C..

Passaram-se quase oito séculos até que, em 813 d. C., um eremita de nome Pelayo viu uma chuva de estrelas cadentes sobre uma colina e, mais tarde, o próprio Santiago apareceu em sonho e revelou que as luzes indicavam o seu túmulo. Pelayo para lá seguiu e achou o esquife, comunicando ao bispo Teodomiro, de Iria Flávia, que, por sua vez, informou o achado ao rei Alfonso II das Astúrias. Este decidiu caminhar de Oviedo até o local para conferir a descoberta. Este é o trajeto do chamado Caminho Primitivo, o mais antigo entre os caminhos que levam anualmente milhares de peregrinos a Santiago. O rei mandou, então, construir um pequeno templo que atraiu moradores a um vilarejo que adotou o nome de Santiago de Compostela.

Minha caminhada foi bem maior que a do Caminho Primitivo, que soma 313 quilômetros. Em 2011, aliás, já havia cumprido o chamado Caminho Francês, que começa na divisa da Espanha com a França, nos Pirineus, em Saint-Jean-Pied-de-Port (França), que dista 764 quilômetros de Santiago. Esse trajeto, também conhecido como jacobeu, se popularizou a partir do século XI, quando o rei Sancho III, de Navarra, levou para a Espanha a francesa Ordem de Cluny.  Esta defendia um retorno da fé cristã à experiência espiritual, baseada na vida dos monges. Entre as práticas defendidas estava a peregrinação. Aliás, o termo peregrino surge no Caminho de Santiago, pois aqueles que o cruzam vão “pelo campo” (per agro, em latim).

A partir daí e, particularmente desde 1064, quando tem início a construção da catedral de Santiago, em estilo românico, a prática espiritual de percorrer o caminho se torna tradicional. Por isso vários reis passam a financiar a construção de pontes e hospitales (albergues) para os peregrinos. O filho de Sancho III, Ramiro I, então primeiro rei de Aragão, criou a infraestrutura de outro trajeto, que se inicia em Somport, também nos Pirineus e que se encontra com o Caminho Francês em Puente de La Reina. Esse ramo ficou conhecido como Caminho Aragonês. Foi esse que escolhi por para meu segundo desafio na Espanha.

(foto: arquivo pessoal)

 

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